Advocacia e Justiça do Trabalho
Por Ivete Ribeiro *
- Direito e sociedade
É evidente que o direito surge com a civilização, pois basta que uma comunidade se instaure para que surjam os conflitos de interesses e, assim, a necessidade de regulação do meio social. Sem ordem e regras nenhuma civilização poderá se manter de forma harmônica.
O direito surge como o meio regulador das relações humanas, para permitir que um determinado meio social se mantenha de modo ordenado e pacífico.
Montesquieu, por isso, afirma que
“As leis, em seu significado mais extenso, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas; e, neste sentido, todos os seres têm suas leis; a Divindade possui suas leis, o mundo material possui suas leis, as inteligências superiores ao homem possuem suas leis, os animais possuem suas leis, o homem possui suas leis.”
Em verdade há uma relação simbiótica entre o direito e a sociedade/homem. Como ensina Flávia Lages de Castro,
“Entende-se, em sentido comum, o Direito como sendo o conjunto de normas para a aplicação da justiça e a minimização de conflitos de uma dada sociedade. Estas normas, estas regras, esta sociedade não são possíveis sem o Homem, porque é o Ser Humano quem faz o Direito e é para ele que o Direito é feito.”
Ao sistema jurídico incumbe, portanto, regular as relações sociais de modo a permitir a organização de certa sociedade e, assim, sua manutenção ou progresso.
No entanto, o direito constitui uma ciência social e, como tal, deve respeitar os valores do meio que regula. Por isso, de acordo com a clássica lição de Georges Ripert, quando o Direito ignora a realidade, a realidade a realidade se vinga, ignorando o Direito.
2. Direito, justiça e a advocacia
Tendo em vista ser imprescindível a regulação do meio social, indispensável se fez que surgissem aqueles que tratassem a matéria de forma profissional e, assim, se materializou a nobre missão da advocacia.
A palavra advogar tem sua origem no latim “ad vocare”, que significa interceder em favor de alguém. Assim, advogado é aquele que é chamado a falar em nome de outrem para defender seus interesses e, para tanto, vê-se instado, a cada momento, a interpretar o direito posto e buscar de forma combativa os ideais da Justiça.
No início, o exercício do direito de defesa era personalíssimo, ou seja, apenas o acusado poderia apresentar os argumentos necessários para questionar a acusação imputada.
Com o passar do tempo, os sistemas permitiram o exercício da defesa por outrem, com capacidade e conhecimento técnico.
Na Grécia, aponta-se o julgamento de Orestes, orientado por Apolo, o qual, após o exílio, em vingança pela morte de seu pai, mata sua mãe, Clitemnestra de Egisto. Entretanto, tal crime deveria ser punido pelas Erínias, que perseguiram o matricida. Apolo então determina que Orestes vá a Atenas, para que tenha um julgamento justo, tendo ele se incumbido da defesa do acusado.
Após os debates, a decisão acerca da condenação de Orestes estava empatada e Minerva decidiu a questão, ao acolher a defesa de Apolo e reputar que o acusado agiu corretamente, pois matou, na verdade, a assassina de seu pai e, entre dois deveres sagrados, optou por aquele que merecia ser cumprido.
A representação dos interesses do acusado surge, como meio de se buscar a efetivação da Justiça, função magistral e precípua do advogado, desde priscas eras.
Na Babilônia, no Epílogo das Leis de justiça, Hamurabi, o Rei sábio, estabeleceu que:
“Que cada homem oprimido compareça diante de mim, como rei que sou da justiça. Deixai-o ler a inscrição do meu monumento. Deixai-o atentar nas minhas ponderadas palavras. E possa o meu monumento iluminá-lo quanto à causa que traz, e possa ele compreender o seu caso.”
Segundo Angelo Maraninchi Giannakos, em Atenas encontram-se antecedentes históricos da preocupação com a defesa dos hipossuficientes em Juízo, pois, anualmente, eram nomeados dez advogados para defender os pobres.
Em Roma, sob o comando do Imperador Constantino, foi assegurado advogado a quem não o tivesse, o que foi incorporado por Justiniano ao Digesto, em seu Livro I, Título XVI, § 5º.
Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco, ao tratar da justiça, afirma que ela é a
“disposição da alma que graças à qual elas dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo; de maneira idêntica, diz-se que a injustiça é a disposição da alma de graças à qual elas agem injustamente e desejam o que é injusto”
A Justiça é, para o estagirita, a maior das virtudes, pois objetiva o bem do outro e diz que
“A justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente a si mesmas como também em relação ao próximo.”
Neste universo conceitual se firma a função do advogado, consubstanciada em defender sempre a lei e a justiça. Segundo o grande advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto, que tanto honrou tão nobre profissão,
“O advogado só é advogado quando tem coragem de se opor aos poderosos de todo gênero que se dedicam à opressão pelo poder. É dever do advogado defender o oprimido. Se não o faz, está apenas se dedicando a uma profissão que lhe dá o sustento e à sua família. Não é advogado”
3. Advocacia na Constituição Federal
A advocacia, com efeito, consiste em árdua e digna missão de buscar de forma incansável a justiça ou, nas palavras de Eduardo Couture, “a advocacia é uma árdua fadiga posta a serviço da justiça.”
Não por outro motivo, o artigo 133, da Constituição Federal de 1988, de forma irretocável, fixou que o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
No entanto, observa-se o respeito à advocacia e sua importância na realização da justiça, desde principalmente a Constituição de 1934.
Em seus debates, em grande parte influenciados pelo Deputado João Mangabeira e por Levi Carneiro, houve a inclusão do advogado nos tribunais, como meio de trazer experiência e visão diversa às Cortes, algo que se mostrou salutar para o desenvolvimento da jurisprudência, de tal modo que jamais deixou de ser repetido em todas as constituições futuras.
Efetivamente, a prática da advocacia permite ao profissional do direito vivenciar o conflito de interesses desde sua gênese e, assim, lhe permite absorver experiência e conhecimento, não apenas jurídico mas, principalmente, social, indispensável à boa interpretação das normas.
Não por outro motivo a Emenda Constituição 45/04 exigiu, para o ingresso na magistratura, o efetivo exercício da atividade jurídica por três anos.
4. A advocacia na Justiça do Trabalho
É cediço o trabalho hercúleo do advogado, consistente em ouvir o relato emocionado de quem o procura, cujo patrimônio ou liberdade se encontram em risco e, de modo técnico e convincente, traduzir todo o conteúdo do relato em uma petição inicial ou defesa.
A partir da fria página em branco, começa a formatar o conteúdo da justiça. Inicia assim a defesa do direito, muitas vezes sem previsão legal expressa, mas, pela genialidade interpretativa, começa o advogado a buscar a solução da lide a ele apresentada.
Vários são os exemplos históricos, como aquele formulado pela pena sempre precisa e lúcida do saudoso Rio Branco Paranhos, ao levantar a tese da dispensa obstativa do estável decenal, quando o empregador, de modo a frustrar o direito do trabalhador à estabilidade no emprego, extinguia o contrato com oito ou nove anos de labor prestado.
O mesmo advogado, em brilhante fundamentação, defendeu os interesses de um gerente de uma rede de supermercados, o qual, uma vez dispensado, deparou-se com o cancelamento pela empresa de seu plano de saúde no curso do aviso prévio. Inexistente, de maneira expressa, o direito à manutenção daquele benefício à época, a tese foi acolhida pelo hoje Desembargador, na época juiz substituto, doutor Carlos Roberto Husek, que substituía o juiz titular e atualmente ministro aposentado Vantuil Abdala, o qual concedeu liminar para que a filha do trabalhador, em tal período, realizasse cirurgia para retirar um câncer de mama.
Da incessante provocação da advocacia desenvolve-se a jurisprudência.
Do pensar e inovar do advogado, da interpretação constante das normas, surgem as soluções jurídicas.
Assim surgiu o pedido de estabilidade do portador do vírus HIV que, embora não possua previsão legal expressa, hoje possui sua garantia assegurada pela Súmula 443, do E. TST.
Da mesma forma, há pouco mais de uma década, o inovador pedido de manutenção de plano de saúde ao empregado que recebe auxílio-doença ou aposentado por invalidez, minoritariamente aceito pela jurisprudência, passou a ser protegido e tutelado pela Súmula 440, do E. TST.
Até 2009, o E. TST não aplicava a multa do paragrafo 8º, do artigo 477, da CLT, quando fundada controvérsia acerca da existência da obrigação.
Entretanto, graças à insistência fundamentada dos advogados, houve mudança do entendimento então pacificado que gerou, inicialmente, o cancelamento da Orientação Jurisprudência 351, da SDI-I, do E. TST e hodiernamente a matéria se encontra pacificada pela Súmula 462.
Muitos outros exemplos da brilhante atuação da advocacia poderiam ser colacionados, mas, o que se torna claro, sempre e de forma indiscutível, é a importância de sua atividade.
A evolução do direito posto se concretiza através das pretensões e defesas cuidadosamente elaboradas.
A atividade do advogado, sempre atento à lei e à ordem jurídica, é imprescindível para dar à sociedade, a segurança necessária na busca incansável da Justiça.
5. A absorção desta experiência pela Magistratura através do Quinto Constitucional nos Tribunais Trabalhistas
É indene de dúvida que a instituição do Quinto Constitucional nos Tribunais, inclusive e principalmente na Justiça do Trabalho, teve por finalidade a construção de um modelo que conjugasse a expertise dos magistrados concursados, seu rigor e suas virtudes profissionais, com a vivência, a sensibilidade e a técnica advindas, tanto da Advocacia, quanto do Ministério Público.
O Quinto Constitucional é, em última análise, a simbiose dos paradigmas para realizar um diálogo técnico e ético, que busca sintetizar os melhores esforços para a evolução da atividade jurisprudencial, tanto no aspecto do direito material, como no domínio do direito processual do trabalho, de modo a atualizar a interpretação sobre o mundo do trabalho, em constante modificação.
Assim, o Quinto Constitucional realiza a intersecção dos polos dinâmicos dos operadores do direito e, consequentemente, dele se exige a fusão das virtudes e dos potenciais que marcam, de maneira indelével, a Magistratura, a Advocacia e o Ministério Público.
Permite, em síntese, a existência do Quinto Constitucional a absorção da rica experiência e vivência da Advocacia pela Magistratura, relatada em breve síntese neste artigo, de modo a dignificar, ainda mais, a nobre atividade decisória dos Tribunais e fortalecer a autoridade desta perante os jurisdicionados, trabalhadores e empresários.
6. Conclusão
A experiência histórica brasileira evidencia que o exercício da advocacia, de forma livre e combativa, produz os melhores efeitos para a materialização dos paradigmas ideais da justiça, os quais, na sua essência, constituem a coluna vertebral de todo o sistema jurídico.
Para finalizar, ainda outra vez se faz indispensável citar Heráclito Fontoura Sobral Pinto que traduziu de forma clara e precisa, a vida do advogado
“No dia em que eu não puder, nos tribunais, mais gesticular, por já estar avançado em idade, usarei a palavra. No dia em que eu não puder mais usar a palavra mas puder escrever, pedirei que outros a usem. E no dia em que não puder fazer mais nada, meu olhar vai demonstrar que sou um defensor da lei”
* Ivete Ribeiro é desembargadora do TRT da 2ª Região. Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007). Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.